Por Nhenety Kariri Xocó
Nós, indígenas Kariri-Xocó, do
município de Porto Real do Colégio, em Alagoas, somos na realidade, um grupo de
origem pluriétnica. Nossa formação vem da resistência dos Kariri, Aconã e
Karapotó no século XVII, dos Tupinambá e Natu no século XVIII e dos Xocó no
século XIX.
Nosso universo representa-se em
forma de círculo. Nossa visão cultural é de um “Horizonte Circular”, de cor
azul, com a Aldeia Kariri-Xocó no centro, a natureza ao redor e o Rio São Francisco
passando pelo meio e completando o ecossistema.
Nossa aprendizagem é baseada em
círculos evolutivos. Por exemplo, para ser um pescador, inicia-se a
aprendizagem com a criança fazendo artefatos de pesca, construindo anzóis, redes
e armadilhas. O pequeno índio torna-se assim, hábil pescador adulto, fechando o
círculo da pesca. Para ser uma ceramista, a menina aprende com a mãe a arte de
modelar o barro, as técnicas tradicionais de confeccionar potes e panelas e
pintar os objetos. Mas a sua aprovação como ceramista é quando se torna adulta,
dominando toda a arte e fechando, assim, o círculo da cerâmica. O território
tradicional é sagrado para nosso povo e tudo é diferente em comparação a outros
lugares: o Sol, a Lua, as estrelas, as nuvens, a chuva, as serras, tudo...
No passado, o homem branco fez muitas perguntas: - Qual o tamanho da terra? Qual o limite? Qual a forma do território - quadrado ou redondo? Qual o marco divisor?
E o índio respondeu: - O Sol
nasce e se põe em nossas terras; a linha do horizonte é o limite, onde o céu se
encontra com a terra, de forma circular porque o nosso mundo é redondo.
É que antigamente, nosso povo
circulava por todo esse território, morando aqui e ali, acompanhando as caças e
dando nomes aos lugares. Se um gavião cantasse no momento em que nossos
ancestrais avistavam uma serra, logo davam o nome de “Serra do Gavião”. Se eles
vissem uma onça entrar numa gruta durante a caçada, chamavam o local de “Gruta
da Onça”. Uma lagoa com muitos jacarés denominavam “Lagoa do Jacaré”.
Nossa terra está toda registrada
por nosso povo com nomes associados à fartura, alegrias e tristezas. Ela traz
nossa cultura e o seu tamanho está de acordo com as nossas necessidades físicas,
biológicas e culturais. A área de ocupação tribal não se limita à aldeia, ao
lugar de habitação.
Nosso território vai muito além,
incluindo áreas de roça, pesca, fruta, fontes de barro para cerâmica e onde
estão as caças. O rio é sagrado porque lá vivem os piaus, as xiras, os mandins,
os pitús, as tartarugas. A mesma importância tem o lugar onde moram as abelhas,
as araras, os macacos, as antas, as cutias, os porcos-do-mato. Os ninhos de
aves e pássaros são locais importantes para nossa cultura pela necessidade das
penas para os cocares. Os canteiros naturais onde encontramos a macambira, por
exemplo, são vitais por serem bancos de ervas medicinais para o nosso povo.
Florestas, lagoas, várzeas,
brejos, ilhas, enfim, todos os lugares são especiais. A natureza sempre
organizou o território tribal e assim, deveríamos seguir a evolução natural.
Mas tivemos que resistir à muita
violência. Antes do contato com os brancos, o Território Indígena Tradicional
Kariri-Xocó abrangia 3.017 Km², o que ocupava as duas margens do Rio Opara (nome
indígena do Rio São Francisco) e se mantinha como um círculo no horizonte, onde
a terra se encontrava com o céu, com o Rio, com a floresta atlântica, a mata de
caatinga, lagoas e várzeas.
Nosso território físico atual nos
oprime, mas um território maior e mais rico ainda está vivo em nossa memória.
Com fé e luta, recuperaremos nossas terras