24 de maio de 2015

Rapadura vermelha

Nhenety

Por Nhenety Kariri-Xocó
Guardião da Tradição Oral

Somos índios evoluídos sim. Estamos aqui há muito tempo, antes de Colombo chegar na América. E como todos os povos, desde o início de nossa civilização, vivemos evoluindo. Com a invasão, fomos forçados a um grande processo evolutivo cheio de sofrimentos. No Nordeste temos 500 anos de resistência e ainda contamos nossa história.

Foram feitos aldeamentos para diminuir nossos territórios, foram implantados colégios jesuíticos para tirar nossa língua, para impor uma religião, mudando nossa estrutura sociocultural. Se nossas casas estavam dispostas em círculos, impuseram as linhas retas. Se vivíamos em uma grande maloca coletiva, os padres botaram um casal por casa. O índio cuidava de sua subsistência e foi forçado a trabalhar para a Igreja, para a acumulação de bens. Quando o índio precisava de algum produto ia na floresta e colhia, depois foi obrigado à força a ir além de seu limite físico e muitos morreram carregando bens para outros, tirando além do certo. O novo sistema trouxe a devastação da Natureza e a extinção de etnias, de animais e de vegetais.

Uma comunidade indígena expressava sua potencialidade quando tinha mais de 300 pessoas, cada indivíduo com sua função social no coletivo e, quando os invasores exterminavam noventa por cento da população de uma etnia, os trinta indígenas sobreviventes não podiam mais expressar a sabedoria dessa cultura, ficando desestruturados. Daí a estratégia do invasor era juntar em um espaço só trinta sobreviventes de uma etnia, com vinte de outra e dez de outra; confinados a um lugar só, criando uma nova confusão, homogeneizados através da imposição do uso da língua portuguesa, suprimindo todas as religiões. Os indígenas ou morriam na luta ou morriam lentamente na ditadura do aldeamento, morrendo culturalmente.

Um amigo Kiriri me ensinou assim: A partir da colonização, nós indígenas não mais vivemos mas SOBREVIVEMOS. O índio que vive está em harmonia com a Natureza. Mas hoje, nós só sobrevivemos; temos pouca terra; o sistema nos incomoda; continuam tirando nossas terras, nossa educação tradicional, nossa religião. Índio e Terra são indivisíveis. Terra é Mãe, é Avó, é família, é tudo. Tudo isso está vivo. Temos nossa memória viva. A terra também tem sua memória. Na terra está registrado tudo. Se escavar vai encontrar ponta de espadas por cima da ponta da flecha, cacos de barro de nossos antepassados, urnas funerárias de cerâmica quebradas e as moedas do invasor.
Nós indígenas passamos todas as fases do Brasil; desde antes dos espelhinhos e da tinta vermelha... Foram muitas as estratégias para nós indígenas deixarmos de ser nós mesmos e funcionarmos como uma peça do capitalismo. A educação foi e é usada para isso.

Nos primeiros tempos da colonização foram colocados os povos diferentes, de culturas e línguas diferentes. Cada povo tinha sua educação originária de caráter natural. Essa educação era um sistema adaptativo; adaptado à Natureza. Os indígenas viviam sempre em harmonia com a Natureza; em sintonia com a Mãe Terra, até os colonizadores instalarem um novo sistema. Tiraram os caciques e colocaram os capitães-mor; tiraram os Pajés e botaram os padres. Fizeram o plano para a retirada dos conhecimentos dos povos e implantar uma nova mentalidade: a da produção capitalista. Primeiro, destruíram a mata atlântica para vender a tinta vermelha na Europa; depois, colocaram a cana de açúcar para produzir açúcar para Europa. Substituíram a mata por cana e botaram índios como escravos. A essa fase do Brasil eu chamo de Memória da Rapadura; que veio logo depois da Memória das miçangas e antes da memória das pedras brilhantes.

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